Lá estávamos nós, em pé, no meio do estádio. Acima das nossas cabeças, a abóbada vazada e a lua, quase cheia, derramando sua luz, brilho entre o ouro e a prata, sobre nós. No palco, a presença de Gil transmitia a alegria simples, sincera, de quem queria estar mesmo ali, fazendo mesmo aquilo. Alegria de músico de palco, vida de brincadeira e troca na canção. “Do luar, do luar só interessa saber, onde está, que a gente precisa ver o luar.” Levanto a cabeça, aponto para o céu, convidando Lorena a olhar também. Que sorte estarmos vivas, habitarmos esse instante.
***
Um canhão explodiu uma enxurrada de papeis coloridos, bem na minha frente. Fazia um barulho surdo que abafava o restante do som, mas parecia uma explosão de felicidade. Abraçada a Lorena, eu pulava no meio da chuva de papel e tudo ao redor parecia rebrilhar. Olhando em direção às arquibancadas, os pequenos fragmentos suspensos como uma névoa purpurinada compunham uma imagem belíssima. A mulher ao meu lado ria com a minha alegria: eu pulava agora de braços abertos, como a receber e expressar o momento com todo o meu corpo.
Debaixo da chuva brilhante, uma vontade danada de vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá. Éramos só Lorena e eu, mas um monte de momentos, pessoas, afetos carregados por dentro. Todos ali, explodindo, rebrilhando o avesso de mim, de minha pele. Música é de dentro pra fora e de fora pra dentro. A generosidade do cantor é nos oferecer um outro, variado jeito de sentir, de habitar o sentimento que trazemos dentro. É nos oferecer uma outra luz sob a qual olharmos a nós mesmos e nossas vidas tão precárias, passageiras. É oferecer um modo para que o instante, que passa, como passaram aquelas horas no estádio lotado, aqueles minutos debaixo da chuva colorida, para que o instante se dilate cá dentro e transborde uma vida inteira.
***
Vivi sempre sob a cômica contradição de aprender numa escuta só a letra inteira de uma canção e de não conseguir nunca identificar, pela melodia, as músicas que escuto à exaustão. Ali, de pé na pista, ao primeiro acorde do arranjo mais heterodoxo, eu sabia dizer que música era a da vez.
***
De repente tenho seis, sete anos. Eu ainda não sei disso, mas meu pai é um rapaz muito moço, nem trinta ainda. Preenche a casa com sua voz marcante de tenor. Com o gosto que têm para o ritmo forte, dançante, vai da sala para o quarto, do quarto à cozinha, em desbragada performance: “o segurança me pediu o crachá...”. Miúda, completo, achando a maior graça do mundo: “eu disse nada de crachá, meu chapa!” E então ele sai requebrando, “sou um escrachado, extra achado num galpão abandonado”. Cantamos juntos: “NADA DE CRACHÁ!” Constato que, ao redor, só eu conheço e sei cantar essa.
***
Tenho doze – ou são quinze, vinte anos? É domingo, “dia de casa de vó”, no UR-04. Vovó Doia, pequenininha, mas ágil, assobia enquanto lava roupa, costura, trata galinha, cuida das plantas. Tentei mil vezes, ao longo dos anos, assobiar como ela, mas muito mal sai som quando contraio os lábios. Ouço sua voz rouquinha, “por isso eu vou na casa dela, ai ai, que é pra fazer amor com ela, ai ai”. Eu e mainha explodimos na gargalhada: “que safadeza, Doinha!” Assobiar ela sabe, cantar são outros quinhentos...
***
Mainha nos educa ao modo como sabe. É dura e complacente, é carinhosa e vigilante. Baixinha, esbelta, “toda entroncadinha”, como serei eu mais tarde, ainda mantém o mesmo cabelão na cintura de sua época de catequista. Formada, como meu pai, por velhas e assanhadas freiras da teologia da libertação, faz de nossa educação uma pastoral. Quer que saibamos algo de deus e da Bíblia, embora não tenhamos exatamente religião. Quer que entendamos o lugar no mundo de onde viemos e aquele que ocupamos. Sua voz é doce, ainda guarda o treino do coral. Meu irmão e eu cantamos com ela, felizinhos e pouco entendidos: “eu também tou do lado de jesus” – damos pulinhos, numa torcida – “só que acho que ele se esqueceu de dizer que aqui na terra...” – aumentamos o volume – “a gente tem de arranjar um jeitinho pra viver!”
***
Meu pai e meu tio são performáticos. Cantam e dançam músicas de ritmo forte e letras engraçadas (para nós, as crianças). Minha mãe gosta de músicas leves, bonitas, reflexivas. Torce o nariz para muitas das músicas que meu pai não para de cantar e se abusa quando vê que eu e meu irmão aprendemos “aquelas coisas feias”. É com horror e imponência que nos assiste pular, como três pipocas, peça casa, dançando ao comendo de meu pai: “ter-ca-be-lo-de-ín-dio-moi-ca-no...”. O outro responde, sem entender o que diz: “ME APRAZ!”. “Sa-ber-que-entra-re-mos-pe-lo-ca-no”, “SATISFAZ!” Seu estômago revira à constatação de que aprendemos os piores versos (e os repetimos a plenos pulmões): “TRAN-SO-LI-XO-CUR-TO-POR-CA-RIIIII-A!” E logo estamos rindo, desafiadores: “eis que essa cidade é um ESGOTO SÓ!”. Como não pudesse piorar, meu pai libera, apenas e somente-só nesse contexto, o ultratransgressor gesto de “dar banana” e gritamos: “sou o punk da periferia, sou da freguesia do Ó”, “ó-ó-óooooo, AQUI PRA VOCÊS!”. Os dois pequenos punks já não moram mais na periferia e não fazem a menor ideia, por muito que se divirtam, daquilo que cantam.
***
O filho mais velho de Gil e Sandra, Pedro, nasceu em Londres, quando a família estava no exílio. Aos dezenove, no Rio, morreu em um acidente de carro. Li, em algum lugar, que durante anos Drão esteve fora do repertório dos shows. Os versos “os meninos são todos sãos” doíam demais em sua repentina incorreção. Nas fotos, Pedro é um neguinho alto, magro e muito sorridente. Era músico, talvez o primeiro filho a acompanhar o pai nos shows. Penso em tio Val, morto bem antes dos trinta. O único de nós que sabia tocar – um violão que carregava para toda parte e uma flauta transversa que ganhou de um professor do Conservatório de Música que viu talento naquele neguinho alto, sorridente e brincalhão. Meu tio, como meu pai, tinha uma voz potente e bonita. Como meu pai, ouvia música o dia inteiro. No ano que sucedeu sua morte precoce, imprevista, cantar se tornou muito difícil.
***
Quando finalmente toca Drão, surgem no cenário fotos de Pedro criancinha. Também vemos Preta, igualmente miúda. Num dos ciclos mais ferozes do câncer, seu pai lhe disse que não resistisse à morte para além das forças do corpo. Morrer, afinal, é parte do ciclo da vida. Enquanto Drão é tocada, e cantada em coro por uma multidão, a música se ressignifica por inteiro em mim. Não diz mais da separação de um casal, diz da permanência e transformação do amor. O amor, qualquer que seja.
Aquele que nutro por Lorena, abraçada à minha cintura, respirando quente ao meu pescoço. Aquele que nutro por meus pais, que me ensinaram a cantar boa parte do que sei e cujas vozes e sorrisos se superpõem aos do cantor. Aquele amor idealizado e cheio de saudade, o que tenho pelos meus que partiram cedo e deixaram como rastro menos um cheiro que uma profusão de sons. O que sinto por meus amigos e meu irmão, que compartilham comigo, de perto, essa aventura de existir e me aturam cantando o tempo todo ou mandando-lhes canções que nem sempre terão paciência de ouvir -são tantas!
Penso agora que Drão é um hino ao afeto e ao seu modo de tornar possível o impossível desta dura caminhada pela estrada escura. O afeto daqueles com quem dividi momentos que já não nos unem mais – vida fluida e transformativa, como deve ser, como é bom que seja. O afeto daqueles que nos torcem a cara e daqueles para quem torcemos a cara de volta – “devo muito aos que não amo”. O afeto dos que ficam e me ensinam novas canções. Dos que me mostram que o amor não é coisa dada, fato consumado, linha de chegada, mas longo estradar. É um estarmos em transformação, aproximando-nos e nos afastando, esquenta-esfria, tensão e relaxamento, nos tateando mutuamente e sendo, na vida uns dos outros, trigo e pão.
***
Madonna canta que “music makes the people come together”. Daqui vejo Gil, preto no branco, a meio do palco, inundando e repartindo comigo uma vida inteira. Que não saiba ele meu nome e meu endereço é questão sem a menor importância. No show que narra sua história, relembro a minha e a dos meus. Escutá-lo é habitar mais e melhor esta casa, este corpo, este mundo, vida imensa de palavra e som. “Viver é simplesmente um grande balão. Voar no céu azul é a missão”. Não esqueço.